Como parte da CF/88, o ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias apresenta um conjunto de normas que têm como finalidade estabelecer regras de transição entre o antigo ordenamento jurídico e o novo, instituído pela manifestação do poder constituinte originário, providenciando a acomodação e a transição do antigo e do novo direito edificado1.
Assim, por intermédio da EC 31/00, a qual alterou o ADCT, foi introduzido o art. 822 para dispor que os Estados e o Distrito Federal devem instituir o FECP – Fundo de Combate e Erradicação à Pobreza.
A partir disso, o §1º do referido art. disciplinou a possibilidade da criação de, no máximo, 2 pontos percentuais adicionais na alíquota do ICMS – Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e intermunicipal e de Comunicação, desde que incidentes sobre produtos e serviços supérfluos, nas condições a serem definidas em lei complementar.
Ainda que clara a redação dessa norma quanto à exigência de edição de lei complementar que regule essa imposição tributária, a maioria dos Estados regulamentou e iniciou a cobrança do adicional de ICMS sem a existência daquela norma nacional e ou a obediência aos dispositivos na LC 87/1996, que é a legislação responsável por traçar a linhas mestras do ICMS, regente de seus princípios e regras gerais.
A permissão constitucional para a cobrança do referido fundo implicou, consequentemente, no surgimento de diversas legislações estaduais sobre o tema, denotando-se uma ausência de padronização quanto a lista de produtos supérfluos passíveis da cobrança do adicional.
Assim, verificou-se uma lacuna legislativa, pela falta de normatização em lei complementar, gerando uma insegurança jurídica ao contribuinte, visto que não há atualmente uma definição objetiva do que são produtos supérfluos.
Em pertinência à definição ou, ao menos, à linha do que seja “supérfluo”, o STF foi provocado, por meio do RE 714.139 (Tema 745 de repercussão geral), para decidir quanto à constitucionalidade da legislação do ICMS do Estado de Santa Catarina, que fixou a alíquota de 25% para as operações com energia elétrica e telecomunicação. A corte constitucional compreendeu que a alíquota do ICMS para essas operações não pode ser superior a interna geral do imposto3.
Como consequência dessa decisão, foi inserido, por intermédio da LC 194/22, o art. 32-A na LC 87/1996, a qual caracterizou como bens e serviços essenciais e indispensáveis, que não podem ser tratados como supérfluos: (i) gás natural; (ii) energia elétrica; (iii) comunicações; e (iv) transporte coletivo.
Tema atinente ao disposto na LC é o que também se discute no âmbito da ADIn – Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.716, por meio da qual a Abrafix – Associação Brasileira de Concessionária de Serviços Telefônico Fixo Comutado questionou a inconstitucionalidade da lei 7.611/04 e do art. 2º, inciso VII do decreto 25.618/04, ambos do Estado da Paraíba. Estas legislações dispõem sobre o adicional de 2% de ICMS sobre os serviços de telecomunicação para o financiamento do FUNCEP – Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza da Paraíba.
Nesta ação de inconstitucionalidade, destaca-se a essencialidade dos serviços de telecomunicação para fins de tributação do ICMS. Nesse sentido, não poderia a legislação estadual dispor regra distinta do que já foi regulamentado pela legislação complementar nacional, ou seja, de que as operações relativas à comunicação não podem ser tratadas como supérfluas.
Nesse contexto, cabe dizer que ainda permanece a carência normativa quanto à determinação expressa do rol dos produtos supérfluos, mesmo com a decisão do Supremo no Tema 745 e da LC 194/22, mas, ao menos, há previsão das mercadorias – em rol não exaustivo – consideradas como essenciais e não passíveis da incidência de uma alíquota maior do que a própria alíquota padrão do ICMS.
Apesar disso, vários Estados não estão respeitando essas balizas mínimas, o Estado de Sergipe, por exemplo, que regulamenta o FECP por intermédio da lei estadual 4.731/02, passou a exigir que contribuintes efetuem o recolhimento do adicional de ICMS sobre todos os produtos, sejam eles supérfluos ou não.
O fisco sergipano estabeleceu, inicialmente, uma alíquota de 2% e sua incidência sobre os produtos compreendidos pelo próprio Estado como supérfluos (§2º do art. 2º da referida lei estadual publicada em 20024).
Mais recentemente, em março de 2023, foi instituído o adicional de ICMS em 1% para todos os produtos comercializados no Estado de Sergipe (art. 2º-A da lei 9.177/235), mais aqueles já contemplados pela incidência de 2% na publicação da lei 4.731/02.
A previsão do art. 2º-A, em seu §3º, também trouxe as exceções à aplicação do adicional de 1%, sendo as seguintes6: (i) fornecimento de alimentação; (ii) serviço de transporte; (iii) energia elétrica residencial até 150 quilowatts/horas mensais; (iv) mercadorias que compõe a cesta básica; (v) medicamentos; e (vi) materiais escolares.
Dessa forma, verifica-se que o Estado de Sergipe adotou a alíquota de 2% para o rol de produtos que, de fato, podem ser interpretados como supérfluos e 1% sobre todas as operações e prestações sujeitas à alíquota interna, inclusive nos casos de cálculo sob o regime do ICMS-ST, ressalvadas as poucas exceções acima descritas no §3º do art. 2º-A.
Cabe destacar que, pela óptica da lei sergipana, as operações que englobem gás natural, comunicações e combustíveis, as quais são compreendidas como essenciais e indispensáveis, nos termos do art. 32-A da LC 87/1996, também são passíveis de incidência do adicional de ICMS no Estado de Sergipe.
Vale ressaltar aqui o tema tratado pela ADIn 7.716, que questiona a constitucionalidade da norma paraibana, a qual prevê a cobrança do FECP sobre os serviços de telecomunicação. Neste caso, não há conformidade da norma com o estabelecido pela LC 194/22, que prevê que as operações com bens e serviços com combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo são considerados essenciais, não podendo, portanto, ser alcançados pela tributação de um adicional que visa a arrecadação sobre operações com produtos e bens supérfluos.
Nesse contexto, frise-se, a redação do art. 82 do ADCT expressa que é imprescindível que ocorra a circulação de produtos supérfluos para ser configurado o critério material do adicional de ICMS. Porém, essa lógica, como vimos, não tem sido adotada pelo legislador dos Estados, como Sergipe e Paraíba, que permitiu a tributação pelo FECP para diversos produtos operacionalizados dentro do território, sejam eles supérfluos ou não, inclusive aqueles tidos como essenciais e indispensáveis por força de lei complementar.
Ainda, no âmbito da reforma tributária sobre o consumo, é importante salientar que foi confirmada a manutenção dos Fundos de Combate à Pobreza, mesmo após a recente promulgação da reforma tributária. O art. 5º da EC 132/23, que altera o Sistema Tributário Nacional, manteve vigente o já conhecido art. 82 do ADCT, prevendo a possibilidade de destinação de percentual do IBS – Imposto sobre Bens e Serviços para o financiamento dos fundos estaduais, distrital e municipais, nos limites definidos em lei complementar.
Por mais que seja nobre e necessária ao país a razão social que justifica a manutenção desses fundos, será preciso acompanhar, como nunca foi diferente, a evolução deste tema, inclusive sob o prisma da nova ordem tributária que se instaurará nos próximos anos. Por fim, necessário que os contribuintes continuem supervisionando os limites constitucionais ao poder de tributar, os quais representam importantíssima ferramenta de controle aos arroubos dos entes tributantes.
1 LENZA, Pedro. Direito constitucional. (Coleção esquematizado®). São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553624900. Disponível em:https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553624900/. Acesso em: 05 set. 2023.
2 Art. 82. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem instituir Fundos de Combate à Pobreza, com os recursos de que trata este artigo e outros que vierem a destinar, devendo os referidos Fundos ser geridos por entidades que contem com a participação da sociedade civil.
§ 1º Para o financiamento dos Fundos Estaduais e Distrital, poderá ser criado adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, sobre os produtos e serviços supérfluos e nas condições definidas na lei complementar de que trata o art. 155, § 2º, XII, da Constituição, não se aplicando, sobre este percentual, o disposto no art. 158, IV, da Constituição.
3 “Adotada pelo legislador estadual a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços”
4 I – cigarros, cigarrilhas, charutos e fumos industrializados; II – bebidas alcoólicas, cervejas e chopes; III – ultraleves e suas partes e peças: a) asas-delta; b) balões e dirigíveis; c) partes e peças dos veículos e aparelhos indicados nas alíneas anteriores; IV – embarcações de esporte e recreio, esquis aquáticos e jet-esquis; VI – armas e munições. exceto as destinadas às Polícias Civil e Militar e às Forças Armadas; VII – joias: a) de metais preciosos ou de metais folheados ou chapeados de metais preciosos; b) de pérolas naturais ou cultivadas, de pedras preciosas ou semipreciosas, pedras sintéticas ou reconstituídas; VIII – perfumes; X – pólvoras propulsivas, estopins ou rastilhos, cordéis detonantes, escorvas (cápsulas fulminantes), espoletas, bombas, petardos, busca-pés, estalos de salão e outros fogos semelhantes, foguetes, cartuchos, dinamites e explosivos para emprego na extração ou construção, foguetes de sinalização, foguetes e cartuchos contra granizo e semelhantes, e fogos de artifício; XIII – pranchas de surfe – NCM – 9506.29.00; XIV – pranchas a vela – NCM – 9506.21.00; XV – jogos eletrônicos de vídeo (NCM – 9504.10.10), e suas partes e acessórios – (NCM – 9504.10.9); XVI – cartas para jogar – (NCM – 9504.40.00); XVI – cartas para jogar – (NCM – 9504.40.00); XVII – artigos e alimentos para animais de estimação, exceto medicamentos e vacinas; XVIII – bola de tênis – NCM 9506.61.00 e raquetes de tênis mesmo não encordoados – NCM 9506.51.00; XIX – produtos eróticos; XX – semijoias e artigos de bijuteria; XXI – isotônicos, energéticos, bebidas gaseificadas não alcoólicas e refrigerantes. XXII – Aviões, helicópteros e demais aeronaves, para uso não comercial; XXIII – Aparelhos de sauna elétricos, banheiras de hidromassagem e ofurôs.
5 Art. 2º-A Constitui também receita do Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza a alíquota adicional de 1% no ICMS, ou do imposto que vier a substituí-lo, incidente sobre as mercadorias e serviços supérfluos não relacionados no art. 2º desta Lei, nos termos do Decreto Regulamentador.
6 § 3º O disposto neste artigo não se aplica: I – às seguintes atividades: a) fornecimento de alimentação; b) serviço de transporte: 1. rodoviário intermunicipal de passageiro; e 2. aquaviário. c) fornecimento de energia elétrica residencial até 150 (cento e cinquenta) quilowatts/horas mensais, para consumo domiciliar e de estabelecimento comercial; II – às operações com as seguintes mercadorias: a) gêneros que compõem a cesta básica, relacionados pelo Poder Executivo; b) medicamentos de uso humano; c) materiais escolares, a serem relacionados pelo Poder Executivo.
Site: Migalhas
André Lobas de Castro
Sócio do RVC Sociedade de Advogados