O Congresso sustou, por meio do Decreto-Legislativo nº 176, de 2025, o Decreto nº 12.499, de 11 de junho de 2025, ato pelo qual a Presidência da República, no uso da competência que lhe é outorgada pelo artigo 153, §1º, da Constituição, alterou dispositivos relativos ao imposto sobre operações de crédito, câmbio, seguros e títulos e valores mobiliários, o IOF
Na justificativa do PDL nº 314, de 2025, que deu origem ao Decreto-Legislativo nº 176, de 2025, seu proponente, deputado Zucco (PL-RS), consignou que “o IOF é um imposto extrafiscal que somente pode ser utilizado como instrumento para controle da política econômica, inadmitindo o desejado feitio arrecadatório”[1]. Sugeriu, ainda, que as medidas seriam meramente arrecadatórias e que não teria “o Ministério da Fazenda capturado a aversão do Parlamento e da sociedade com a majoração de tributos”[2].
Irresignado, o presidente da República, por meio da ADC 96, busca a confirmação da validade do decreto que elevou alíquotas do IOF.
Legalidade no aumento do IOF
O impasse institucional entre os poderes se instaurou, impondo questões jurídicas relevantes ao debate:
- 1. quais os limites para o uso da competência outorgada ao Poder Executivo Federal para alterar alíquotas do IOF?
- 2. a extrafiscalidade, sem previsão expressa na Constituição, limita em alguma medida essa competência?
- 3. como se aferir desvio de finalidade no uso da competência utilizada pelo Poder Executivo?
- 4. quais parâmetros autorizariam sustação de decreto presidencial por um decreto legislativo?
Para responder às duas primeiras questões, leia-se o texto do artigo 153, §1º, da Constituição: “é facultado ao Poder Executivo, atendidas às condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V”.
Não há justificativa para a mitigação da legalidade tributária, não há menção à extrafiscalidade, mas apenas se prevê uma competência ao Executivo para alteração das alíquotas de quatro impostos, inclusive as aumentando, por meio de atos infralegais.
Entendimento de juristas
O IOF já era previsto em Constituições anteriores, e o texto da Constituição de 1969, na visão de Aliomar Baleeiro, insinuava-o como tributo com caráter excepcional e extrafiscal, de modo que não deveria ser “usado como receita fiscal propriamente dita” [3].
Deve-se entender essa posição do jurista nos seus próprios termos, já que para ele, na esteira no pensamento de Otávio Bulhões, aos impostos sobre transações financeiras — os denominados impostos do selo — seriam “condenáveis se exigidos com finalidade de suprir recursos de tesouraria, porque recaem sobre valores que de forma alguma expressam a capacidade de contribuir para os cofres públicos” [4].
Ou seja: a repulsa de Aliomar Baleeiro ao uso habitual do IOF para suprir recursos públicos tinha que ver com sua preocupação em torno da capacidade contributiva.
Ricardo Lobo Torres afirma que a Constituição de 1969 permitia a lei destinar as receitas do IOF para a “formação de reservas monetárias ou de capital para financiamento do desenvolvimento econômico” como prova de seu caráter extrafiscal [5].
Caráter fiscal do imposto
Há laivos do passado na justificativa do deputado Zucco, e umas das piores interpretações constitucionais é aquela baseada nos textos de Constituições pretéritas.
Ora, o artigo 153, da Constituição, nos seus oito incisos, prevê os impostos ordinários da União. Ordinários, porque são, por excelência, as fontes de recurso da União, tendo, portanto, caráter fiscal.
Como regra geral, os impostos só podem ser instituídos ou ter suas alíquotas aumentadas por lei (artigo 150, I, da Constituição), daí que a possibilidade de as alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Imposto de Importação (II), do Imposto de Exportação (IE) e do IOF, serem aumentadas por ato infralegal do Poder Executivo desafie explicações pela doutrina tributária brasileira.
Majoritariamente se explica a mitigação da legalidade tributária pela possibilidade de esses impostos assumirem feição extrafiscal, o que implica investigar o que é extrafiscalidade e em qual dispositivo constitucional ela estaria prevista.
Após estabelecer que a função fiscal do tributo é a arrecadação de receitas, Sérgio André Rocha [6], forte na doutrina de José Casalta Nabais, vê a extrafiscalidade como o estabelecimento de uma tributação ou de uma não-tributação por meio de normas que “estão dominadas pelo intuito de atuar diretamente sobre os comportamentos econômicos e sociais dos seus destinatários”[7].
Extrafiscalidade
Para se buscar a definição de extrafiscalidade, há que se andar em círculos e somente, ao final, acacianamente, concluir-se que extrafiscal é tudo o que não é fiscal.
De qualquer sorte, as normas de direito tributário podem servir para induzir comportamentos: são normas tributárias indutoras, na acepção de Luís Eduardo Schoueri, para quem, mesmo “que um tributo seja concebido, em sua formulação, como instrumento de intervenção sobre o domínio econômico, jamais se descuidará da receita dele decorrente, tratando o próprio constituinte de disciplinar sua destinação” [8].
Seja como for, o termo “extrafiscalidade” não aparece em qualquer dispositivo da Constituição e, embora ele pareça se revelar na função de promoção da função social de propriedade nos casos do IPTU e do ITR, por exemplo, seria como a “face oculta” para explicar a mitigação da legalidade tributária no parágrafo primeiro do artigo 153.
Interpretando-se o texto constitucional como ele é, basta ao Poder Executivo respeitar os limites e as condições da Lei Federal nº 8.894, de 1994, que regulamenta a matéria e de cujo artigo 2º se extrai que “o Poder Executivo, obedecidos os limites máximos fixados neste artigo, poderá alterar as alíquotas tendo em vista os objetivos das políticas monetária e fiscal”.
Assim, não é propriamente a invocação abstrata de um desrespeito à extrafiscalidade no aumento de alíquotas de IOF que pode invalidar o ato do Poder Executivo, mas a comprovação de que as medidas executivas tomadas não se coadunam com as políticas monetária e fiscal estabelecidas, que são umbilicalmente ligadas.
Política fiscal
Frise-se que as políticas monetária e fiscal se inserem nas matérias de competência do Ministério da Fazenda (artigo 29, da Lei Federal nº 14.600/2023).
Deve-se destacar também que, ao contrário do artigo 65 do CTN, que limitaria o manejo das alíquotas pelo Poder Executivo apenas por razões de política monetária, a lei que regulamenta o artigo 153, §1º, da Constituição, no que se refere ao IOF, estendeu a justificativa dessa prerrogativa a questões de política fiscal, não havendo inconstitucionalidade, uma vez que o STF entendeu que a ausência de menção expressa à lei complementar no dispositivo permite que a matéria seja veiculada por lei ordinária [9].
Chega-se, assim, à terceira questão a ser respondida.
Baseando-se no magistério de Maurício Dalri Timm do Valle, tem-se que o controle do decreto ou ato infralegal, que altera alíquotas do IPI, do II, do IE e do IOF, deve-se dar pela análise da motivação, das razões que justificaram o uso da prerrogativa constitucional pelo Poder Executivo [10].
Entendimento no STF
O STF, no RE nº 225.602, relatado pelo ministro Carlos Velloso, entendeu que a motivação de decreto que alterou alíquotas do Imposto de Importação pode constar no procedimento administrativo de sua formação [11].
Desta forma, desvio de finalidade haveria, se analisando as razões que justificaram a emissão do decreto, por meio do escrutínio da proposta submetida ao presidente da República, pareceres e outros elementos constantes do processo administrativo que trazem a motivação, verifica-se que as medidas estabelecidas não se adequam às políticas monetária e fiscal.
Nesse sentido, é pueril considerar válido um decreto-legislativo que sustou um decreto presidencial, calcando-se em projeto cuja justificativa teve cinco parágrafos, como o PDL nº 314, de 2025, sem fazer menção à exposição de motivos do presidente da República, a documento formalizado pelo ministro da Fazenda, pareceres da AGU, da PGFN ou a qualquer ato administrativo ou, ainda, a outras normas e atos jurídicos, num contexto maior.
Gustavo Fossati afirma que o Judiciário “não pode intervir nas questões propriamente atintes ao mérito decisivo da política extrafiscal envolvida, sendo essa de exclusiva discricionariedade do Poder Executivo” [12].
Legitimação de ato do Congresso
Se é assim o é em relação ao Poder Judiciário, com igual razão não pode o Poder Legislativo deixar de se desincumbir do especial ônus argumentativo para afastar a deferência que se deve ter ao uso da prerrogativa pelo Poder Executivo.
Poder-se-ia perguntar: quais provas deveria promover o Poder Legislativo para legitimar seu ato de sustar o decreto presidencial?
Caberia ao Parlamento, por exemplo, apontar normas do Banco Central, “visando a anular o efeito que o referido incremento do tributo poderia gerar no mercado financeiro”, para comprovar a ausência de efeito indutor do IOF, como já sugeria Luís Eduardo Schoueri em seu clássico livro de 2005 [13].
Poderia o Congresso, ainda, debater a ausência de efeitos indutores das medidas no mercado de câmbios, seguros e empréstimos do decreto presidencial, o que não fez, porque, como bem assinalou Guilherme Narciso de Lacerda, doutor em Economia pela Unicamp, porque “os apontamentos da proposta mostram o seu indiscutível caráter regulatório, e, sendo assim, ela está plenamente aderente às prerrogativas do Executivo em organizar a política econômica do país” [14].
Enfim, não há prova clara e convincente, prova além da dúvida razoável, de que as medidas governamentais não se prestam às políticas monetária e fiscal.
A vulnerabilidade argumentativa desvela a inconstitucionalidade do Decreto-Legislativo nº 176, de 2025, devendo-se, num momento de grave apequenamento do Poder Executivo diante do Poder Legislativo, o STF resolver o impasse a favor da Constituição.
[1] BRASIL, Câmara dos Deputados. Disponível aqui.
[2] Idem.
[3] BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11ª ed., atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 462.
[4] Ibidem, p. 461.
[5] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário Vol. IV Os tributos na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 196.
[6] ROCHA, Sérgio André. Fundamentos do direito tributário brasileiro. Belo Horizonte: Casa do Direito, p. 95.
[7] NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Almedina: Coimbra, 1998, p. 630.
[8] SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 16
[9] BRASIL, STF, Pleno, RE n. 225.602, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 11.1.1998).
[10] VALLE, Maurício Dalri Timm do. Princípios constitucionais e regras-matrizes de incidência do imposto sobre produtos industrializados. 2ª ed., São Paulo: Noeses, 2016, pp. 444-457
[11] BRASIL, STF, Pleno, RE n. 225.602, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 11.1.1998).
[12] FOSSATI, Gustavo. Constituição tributária comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, pp. 263-264
[13] SCHOUERI, L.E. Op. cit. p. 263.
[14] LACERDA. Guilherme Narciso de. O IOF é um imposto regulatório sim, mas faltou explicar à sociedade.
- Daniel Giotti de Paulaé procurador da Fazenda Nacional, professor e doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ.
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