A reforma tributária, que reúne tributos pertencentes a esferas políticas diferentes em torno do IBS, contém 491 normas constitucionais dúbias, confusas e conflitantes e que foi por nós comentada artigo por artigo (comentários à reforma tributária aprovada pela EC 132/13 – Editora Rideel), foi parcialmente regulamentada por meio do PLP 68/24 entregue no dia 25/4/24 à Câmara dos Deputados. Qualquer estudante de direito sabe que é juridicamente impossível unificar tributos cabentes a unidades federadas diferentes e ao mesmo tempo manter a forma federativa do Estado.
O PLP sob comento contém nada menos que 499 artigos dispersos em 396 páginas, o que totaliza cerca de 5.000 preceitos normativos entre artigos, parágrafos, incisos e alíneas, redigidos com acentuado sadismo burocrático, para serem digeridos pelos contribuintes do IBS/CBC. Contém, ainda, XXIV anexos contemplando infindáveis produtos com reduções de alíquotas que tendem a elevar as alíquotas de referência (anexos I a XV); produtos que integram o Imposto Seletivo (anexo XVI) identificados por números de códigos que não são do conhecimento do público; e anexos do SIMPLES (anexos XIX a XXIV), onde o legislador palaciano fez o uso abusivo da futurologia.
Impossível analisar neste artigo toda a parafernália de normas que compõem esse infernal PLP 68/24.
Faremos uma análise pontual destacando os aspectos principais.
FATO GERADOR
A expressão “Imposto sobre bens e serviços” foi por nós criticada desde o início da discussão da PEC 45/19, por representar um conceito em aberto, geradora de extrema insegurança jurídica. Tudo pode ser tributado pelo IBS tendo como limite o céu, como dizíamos.
Por isso, preconizamos, sem sucesso, sua substituição por “Operações relativas à circulação de bens e serviços” para sinalizar uma operação mercantil, a exemplo do ICMS em que o STF levou exatos 23 anos para precisar o seu conceito como sendo uma circulação jurídica, ou seja, uma operação que implica mudança de titularidade ou de posse. Mas, o legislador quis complicar tudo em nome da simplicidade, que passou a significar mera substituição de quatro tributos por um só tributo, o IBS que é mais complicado do que a soma dos 12 impostos em vigor na Federação Brasileira.
O art. 4º do PLP 68/04 “define” o fato gerador do IBS/CBC, dispondo que incide sobre:
operações onerosas com bens ou com serviços; e
operações não onerosas com bens ou com serviços expressamente previstos nesta lei complementar.
O § 1º passa a enumerar aleatoriamente os atos e negócios jurídicos passíveis de tributação tais como a troca, a permuta, a dação em pagamento, a locação, o empréstimo, a doação onerosa, a instituição onerosa de direitos reais, o arrendamento, inclusive mercantil, a prestação de serviços.
Verifica-se de pronto tratar-se de dispositivo elaborado por um jejuno em direito. O aspecto mais importante de todo e qualquer tributo é a definição clara e objetiva do seu fato gerador, para que o contribuinte não fique na dependência do entendimento subjetivo da autoridade administrativa lançadora do tributo.
Fazer uma enumeração exemplificativa das hipóteses de incidência tributária é semear a confusão na esfera tributária congestionando o Judiciário já emperrado. E mais, tributar serviço prestado gratuitamente, como permite o inciso II, retira a natureza mercantil do imposto que nada tem a ver com o ISS municipal previsto no inciso III, do art. 156 da CF e incorporado pela EC 132/23.
Para complicar mais ainda, o art. 5º acrescenta outras hipóteses de tributação do IBS/CBS representadas por cinco incisos e três alíneas incluindo, entre outras, as operações não onerosas e fornecimento de brindes e bonificações. No inciso final prescreveu “demais hipóteses previstas nesta lei complementar”.
A redação deste artigo, além de desqualificar o IBS/CBS como tributo mercantil, seguiu a mesma linha caótica do legislador constituinte que elaborou a EC 132/23, obrigando o contribuinte a ler cerca de 5.000 normas para descobrir a exata extensão do fato gerador desses tributos.
Se o art. 4º já definiu o fato gerador desses tributos ainda que de forma confusa, pergunta-se, por que carga d’água não se exauriu as hipóteses de incidência tributária, ao invés de fazer sua previsão em todo o corpo legislativo? Qual a razão para desnortear o contribuinte com elaboração de preceitos normativos que fazem sucessivas remissões a outras normas? É para armar uma arapuca para que a multas atuem como fontes alternativas ou complementares da receita tributária? Estamos diante de tributos rendosos?
O § 2º, por sua vez, revela confusão mental do seu autor, quando prescreve que “considera-se operação com serviço qualquer operação que não seja classificada como operação com bem”, como se serviço não fosse um bem, um bem imaterial. Tem, a nosso ver, o propósito de instituir um conceito em aberto em relação a serviços para tributar à discrição do fisco.
BASE DE CÁLCULO
Conforme art. 12 inclui os valores pagos a título de tributos e preços públicos exceto os valores de IBS, da CBS e do IPI. Não contemplou a exclusão do imposto seletivo expresso no art. 156-A, inciso IX da EC 132/23, incorrendo em inconstitucionalidade.
Outrossim, permite incluir na base de cálculo do IBS incidente sobre a energia elétrica infindáveis penduricalhos atualmente incluídos na base de cálculo da tarifa energética como CCC, RGR, CFURH, ESS, EER, PROINFA, P&D, TRUSD e TRUST, essas duas últimas condenadas de longa data pelas duas turmas do STJ, mas recentemente descondenadas pela 1ª seção do STJ em sede de recursos repetitivos, o que eleva a alíquota nominal de 25% do ICMS para a alíquota real de 33%.
A manipulação da base de cálculo para elevar o valor do tributo é a técnica que vem sendo utilizada pelos astutos legisladores das três esferas impositivas, porque ela é traçoeira, pérfida, desleal e invisível. A elevação da alíquota é visível e todos tomam conhecimento do aumento tributário, o que é muito ruim para o fisco.
ALÍQUOTAS
Cada ente federativo fixará suas alíquotas. Continua sem parâmetros para fixação dessas alíquotas, conforme prescrição do art. 14. O PLP 68/24 só diz que as alíquotas devem ser uniformes para todas as mercadorias e serviços, mas não diz que deverão ser uniformes para os 27 estados, DF e 5.570 municípios. Se cada entidade política fixar uma alíquota diferente, não se sabe como o Comitê Gestor deverá proceder para arrecadar o IBS pela soma das alíquotas dos 26 estados, do DF e dos 5.570 municípios.
As fixações de alíquotas de referência serão determinadas nos termos dos arts. 342 a 348, art. 355, art. 357 e art. 358, mas não dizem quais são.
Segundo o EC 132/23 as normas para a fixação das alíquotas de referência pelo TCU somam mais de 50 preceitos. É claro que o TCU não irá se debruçar sobre elas. Será sacada do bolso do colete a alíquota em torno de 27% a 28%, como adiantado pelo ministro da economia.
O PLP 68/24 nada adianta de positivo neste polêmico assunto. Para o contribuinte o mais importante é saber a alíquota e a sua base de cálculo para poder calcular o peso da carga tributária.
Mas, o governo divulga apenas a parte que desperta simpatia, os benefícios da redução de alíquotas, guardando a sete chaves o percentual a alíquota de referência. A reforma tributária continua caminhando para um tiro no escuro. Isso não é correto!
Um tributo só ganha existência jurídica quando presentes os cinco aspectos do seu fato gerador e o aspecto quantitativo (base de cálculo e alíquota) é um deles. Portanto, essa alíquota deverá ser fixada antes do exercício da cobrança. E deverá aguardar o decurso do prazo de 90 dias para iniciar a cobrança, caso a alíquota seja fixada no final do exercício.
LOCAL DE PAGAMENTO
O art. 11 estabelece os seguintes locais de pagamento:
Em relação ao bem móvel material, o local de pagamento é o local de entrega ou disponibilização do bem ao destinatário, como resultado da tributação no destino que pune o estado produtor.
Em relação a bem imóvel, bem móvel imaterial, inclusive direito relacionado a imóvel e serviço prestado sobre o imóvel, o local onde estiver situado o imóvel.
Em relação a prestação de serviço por pessoa física ou fruído presencialmente pessoa física, o local da prestação do serviço.
Serviço de planejamento, organização e administração de férias, exposições etc., o local do evento a que se refere o serviço.
Serviço prestado sobre bem móvel material, o local da prestação do serviço.
Serviço de transporte de passageiros, o local de início do transporte;
Serviço de transporte de carga, o local da entrega ou disponibilização do bem ao destinatário
Serviço de exploração de rodovia pedagiada, o território de cada município e estado, ou do DF, proporcionalmente à correspondente extensão da rodovia explorada.
Serviço de comunicação, o local da recepção dos serviços
Demais serviços e demais bens móveis imateriais, inclusive direitos, o local do domicílio principal do destinatário.
Essa complexidade de local do pagamento resulta de fusão do ICMS que expressa uma obrigação de dar, com o ISS que fundamentalmente expressa uma obrigação de fazer. Certamente levará décadas para o STF dar a palavra final acerca das controvérsias que surgirão inexoravelmente em torno das expressões dúbias como “bens móveis imateriais”, “domicílio principal do destinatário”.
O que são “bens móveis imateriais” referidos nos incisos II e X de forma conflitante? O inciso II comete, ainda, uma impropriedade ao se referir a bem móvel imaterial, hipótese em que o local de pagamento é definido como sendo o local de situação do imóvel. São expressões conflitantes: se o bem móvel é imaterial não faz sentido falar em local de situação do imóvel. Único bem móvel imaterial que conheço é aquele representado por direitos autorais, conforme dispõe o art. 3º da lei 9.610 de 19/2/98. Por que não usou a expressão “direitos autorais” para que todos saibam o que são? Quanto ao “domicílio principal do destinatário” que está referido no inciso X a redação é dúbia. Sempre entendemos que o domicilio é único, enquanto residência pode estar situada em várias localidades.
Por fim, conferir idêntico tratamento entre mercadorias e serviços para definir o local de pagamento irá gerar conflitos intermináveis.
Relativamente à prestação de serviços o PLP sob comento inverte a regra geral prevista na LC 116/03 que fixa, acertadamente, como regra geral para definir o município tributante, o local do estabelecimento prestador e na falta deste, o local do domicílio do prestador, com exceção das 25 hipóteses em que o imposto é tributado no local da prestação. Um advogado que atua em âmbito nacional deverá recolher o imposto perante todos os municípios onde tiver prestado o serviço. Da mesma forma um transportador deverá recolher o imposto em cada município onde fizer a entrega da carga. Pergunta-se, haverá um Comitê Gestor em cada município? Ou o Comitê Gestor centralizado fará a arrecadação do IBS e destinará o produto da arrecadação ao município onde o serviço foi prestado? Em qualquer hipótese isso é muito complicado!
FISCALIZAÇÃO
O art. 316 comete a fiscalização do IBS/CBS às autoridades administrativas fiscais de cada ente político componente da Federação por meio de seus respectivos órgãos fiscais.
O IBS passa a ser um imposto em que diversos atores intervêm no processo de sua instituição, fiscalização, arrecadação e partilha do produto da arrecadação.
A competência impositiva é da União, por meio de lei complementar. A competência para fixar alíquotas é dos estados, do DF e dos municípios. A fiscalização cabe aos estados, ao DF e aos municípios por intermédio de órgãos administrativos fiscais próprios. E, finalmente, a arrecadação cabe ao Comitê Gestor como determinam os arts. 156ª, VII e 156-B, II da EC 132/23.
É primeira vez no Brasil, talvez no mundo inteiro em que a competência tributária é conferida a um ente político; a competência fiscalizatória e deferida a outros entes políticos, assim como para fixar as alíquotas do imposto e, por fim, a competência para arrecadar é atribuída, não um dos entes federados, mas a um mero órgão administrativo federal, autônomo e independente com recursos financeiros próprios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O PLP 68/24 decuplica a complexidade da EC 132/23 e agrava a sua inconstitucionalidade.
Toda essa confusão, que transparece nesses 499 artigos do PLP 68/24, sucintamente examinado em seus aspectos mais importantes, se deve à supina incompetência do importador do IVA europeu que não foi capaz de adaptar o imposto importado à realidade da Federação Brasileira, que é impar no mundo, e nem teve a humildade de ouvir os especialistas em direito tributário, alijando da discussão os integrantes do mundo acadêmico. Resultado disso é a implantação de um imposto inédito, sem paralelo no mundo.
Não se atribuiu a competência fiscalizatória e arrecadatória para a União que é a entidade política competente para criar o IBS, como seria normal, a fim de tentar disfarçar, em vão, a quebra do princípio federativo. É como enterrar a cabeça na areia e bradar: ninguém está me vendo!
Tamanha a desfaçatez do legislador palaciano que continua falando em neutralidade fiscal e prevê a instituições de “n” alíquotas diferentes como resultado das inúmeras reduções; fala-se em simplificar o sistema tributário e cria um inferno fiscal sequer imaginado por Dante Alighiere; e por fim, fala-se em eficiência ao mesmo tempo que se cria vários mecanismos que emperram a operacionalização do tributo.
Os burocratas de plantão não ligam a mínima ao sofrimento e à angústia do contribuinte que é tratado como mero objeto de direito, com o número do CPF carimbado nas costas como, aliás, preconiza a recente lei 14.534 de 11/1/23 que adota o CPF como único número suficiente para identificação do cidadão brasileiro nos bancos de dados de serviços públicos.
Kiyoshi Harada – Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT.
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