Uma crítica muito presente na obra do autor lusitano José Casalta Nabais, a qual é encampada por diversos autores nacionais [1], é o negligenciamento relativamente aos deveres fundamentais, eis que se vive o império da hipertrofia dos direitos fundamentais [2]. Porém, conforme lembra Klaus Tipke:

El Estado, fundado en la propriedade privada de los medios de producción, está obligado a sostener principalmente mediante impuestos las cargas financieras exigidas para el cumplimiento de sus funciones [3], eis que, “Sin impuestos y contribuyentes no puede constituirse ningún Estado, ni el Estado de Derecho ni, desde luego, el Estado Social” [4].

A evolução do próprio Estado implicou um acréscimo de responsabilidades que a ele é atribuído no âmbito das democracias modernas. Nesse sentido, é inegável a maximização do papel do Poder Público em Estado democrático de Direito.

Aliás, deve-se recordar que “há de se ter presente que, ao longo da história ocidental, as concepções acerca da ideia de Estado, Constituição, Direitos Fundamentais e tributação caminham como se de ‘mãos dadas’ estivessem” [5].

É do texto constitucional, em seu artigo primeiro, que se extraí que um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito é o respeito, a proteção e a promoção da dignidade da pessoa humana. Aliás, na generalidade dos países ocidentais esse princípio ocupa um papel central e indiscutível na conformação do conceito inicialmente enunciado [6].

Com a transição do Estado Liberal para o Estado Social de Direito, tem-se o acréscimo de um viés de cariz prestacional às atividades estatais. Se antes pressupunha-se um abstencionismo liberalista, a superação do liberalismo fez com que ao Estado coubesse a atribuição prestacional, sobretudo na concretização dos direitos fundamentais (sociais) de segunda dimensão.

Embora o Direito seja incindível, a autonomização das matérias é uma realidade, sobretudo por fins didáticos. A verdade é que a autonomia do Direito Tributário, este antes um mero apêndice do Direito Financeiro, se deu com a promulgação da Lei nº 5.172 de 1966 (Código Tributário Nacional). Contudo, é com a superveniência da atual Constituição que se pode aduzir a um movimento de constitucionalização do Direito Tributário [7].

Não se pode olvidar que com a superação dos dois grandes períodos bélicos, em meados do século passado, assentaram-se as bases sobre as quais se erigiu e se solidificou, definitivamente, o Estado democrático de Direito, com esteio na dignidade da pessoa humana — esta que, insiste-se, pressupõe a concretização de direitos fundamentais sociais para a densificação do princípio da dignidade da pessoa humana e, consequente, substancialização do Estado, eis que o mero formalismo não é suficiente para satisfazer a igualdade material que é a marca deste novo paradigma.

Nesse contexto, deve-se atentar ao fato de que os direitos sociais têm um custo — assim como a manutenção dos direitos de índole liberal sempre tiveram —, sendo certo que o Estado, por meio da tributação, angaria a maior parte dos recursos financeiros que dão suporte aos direitos fundamentais sociais por meio da tributação. Essa é a faceta do Estado Fiscal.

Nas palavras de Casalta Nabais:

Olhando para o suporte financeiro do estado contemporâneo, o que vemos é um estado fiscal, um estado que tem nos impostos o seu principal suporte financeiro. O que, atenta a razão de ser do estado, que é a realização da pessoa humana, a realização da pessoa no respeito pela sua eminente dignidade humana, o estado fiscal não pode deixar de se configurar como um instrumento dessa realização. Porventura, o instrumento que mais se revelou e continua a se revelar como o mais adequado à materialização desse desiderato [8].

Sem adentrar no mérito da crise do Estado Fiscal e da ascensão dos movimentos neoliberalistas — matéria que pode ser mais bem estudada na obra “Tributação, desigualdade e mudanças climáticas: como o capitalismo evitará o seu colapso” [9] —, deve-se referir que, hodiernamente, o Brasil adota um modelo de Estado Social em que lhe cumpre a concretização dos direitos fundamentais sociais e que o custo destas prestações é suportado, quase que integralmente, pelos tributos pagos pela sociedade.

Disso emerge a necessidade de aprofundamento em dois pontos importantes e que, uma vez compreendidos, contribuirão para uma melhor percepção da dinâmica que norteia a funcionalidade do Estado Fiscal: o princípio da solidariedade e a cidadania fiscal como consectários lógicos do consenso entre tributação e concretização de direitos sociais e como isso pressupõe o reconhecimento da existência de um dever fundamental de pagar tributos.

Cidadania fiscal

Conforme já apontado em outras oportunidades, “é possível afirmar que o dever de pagar tributos é o principal dever de cidadania, justamente porque, caso tal dever seja sonegado por parte dos componentes de uma sociedade, restarão inviabilizadas as possibilidades de realização dos próprios direitos” [10].

Aliás, já se aderiu à tese de que os dever fundamental de pagar tributos, devido à importância destes para a consecução dos fins sociais do Estado, é um dos primordiais fundamentos do Direito Penal Tributário, conferindo dignidade bastante ao bem jurídico tutelado pela norma penal: a higidez da Ordem Tributária para a consecução de seus fins [11].

De fato, a receita tributária é a principal fonte de sustentação financeira estatal. É através do sistema arrecadatório que o Estado obtém a maior parte dos recursos financeiros que dão suporte não apenas à manutenção da máquina pública — o que possibilita, por exemplo, garantia dos direitos de primeira dimensão —, mas, sobretudo, viabiliza que se tenha fundos para o financiamento dos objetivos sociais aos quais a Carta se vincula desde o seu artigo 3º, conforme explicitado no começo deste estudo –portanto, os direitos fundamentais sociais de segunda dimensão [12].

A partir disso, deve-se ter presente a premência de se resgatar a noção de solidariedade e de cidadania fiscal, pois o incumprimento do dever de pagar tributos, além de negar aos postulados acima descritos, torna deficitária a função prestacional do Estado que, uma vez sem recursos, não pode prover os direitos sociais mais elementares reclamados pela sociedade para uma vida minimamente digna.

Em linhas gerais, eis que um maior aprofundamento seria impossível no âmbito deste espaço, deve-se ter presente que “o liame da solidariedade é o fundamento que justifica e legitima o dever fundamental de pagar tributos, haja visa que esse dever corresponde a uma decorrência inafastável de se pertencer a uma sociedade” [13].

A cidadania fiscal, por seu turno, é inerente ao próprio conceito de Estado Fiscal, pois implica “que todos os membros da comunidade suportem o estado ou seja, que todos os membros da comunidade tenham a qualidade de destinatários do dever fundamental de pagar impostos na medida de sua devida capacidade contributiva [14]”.

Assim, considerando-se que “os deveres fundamentais outra coisa não são, ao fim e ao cabo, senão direitos a uma repartição universal ou geral dos encargos comunitários, dos encargos que a existência e funcionamento da comunidade estadual implicam” [15], deve-se ter em conta que se lhe impõe à sociedade como um imperativo que decorre da própria essência da solidariedade e da cidadania fiscal, pois como bem lembrou Holmes, “os impostos são o que pagamos por uma sociedade civilizada” [16].

[1] FISCHER, Douglas. Delinquência econômica e estado social e democrático de direito. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006; BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e os deveres fundamentais. Porto Alegre, 2009, p. 80.

[2] NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 15 e ss; NABAIS, José Casalta. Por um estado fiscal suportável: estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2005, p. 12 e ss.

[3] TIPKE, Klaus Moral tributaria del Estado y de los contribuyentes. Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 27.

[4] Idem, p. 27.

[5] BUFFON, Marciano. Tributação, desigualdade e mudanças climáticas: como o capitalismo evitará o seu colapso. Curitiba: Brazil Publishing, 2019, p. 25.

[6] BARQUERO ESTEVAN, Juan Manuel. La función del tributo em el Estado social e democrático de Derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002; SANTOS, André Teixeira. O crime de Fraude Fiscal: um contributo para a configuração do tipo objectivo de ilícito a partir do bem jurídico. Coimbra: Coimbra, 2009; SILVA, Germano Marques da. Direito Penal tributário. 2. ed. rev. e ampl. Lisboa: Universidade Católica, 2018; NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998; NABAIS, José Casalta. Por um estado fiscal suportável: estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2005.

[7] LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 51 e ss.

[8] NABAIS, José Casalta. Por um estado fiscal suportável: estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2005, p. 24.

[9] BUFFON, Marciano. Tributação, desigualdade e mudanças climáticas: como o capitalismo evitará o seu colapso. Curitiba: Brazil Publishing, 2019, p. 23-74.

[10] Sobretudo os de caráter prestacionais. BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e os deveres fundamentais. Porto Alegre, 2009, p. 100.

[11] MELLO, Letícia de. A Ordem Tributária e a Legitimidade do sistema punitivo fiscal à luz da teoria do bem jurídico. Revista Científica do CPJM, [S. l.], v. 2, n. 08, p. 38–61, 2023. Disponível em: https://rcpjm.cpjm.uerj.br/revista/article/view/239. Acesso em: 23 fev. 2024.

[12] MELLO, Letícia de. A Ordem Tributária e a Legitimidade do sistema punitivo fiscal à luz da teoria do bem jurídico. Revista Científica do CPJM, [S. l.], v. 2, n. 08, p. 38–61, 2023. Disponível em: https://rcpjm.cpjm.uerj.br/revista/article/view/239. Acesso em: 23 fev. 2024, p. 52-53.

[13] BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e os deveres fundamentais. Porto Alegre, 2009, p. 99.

[14] NABAIS, José Casalta. Por um estado fiscal suportável: estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2005, p. 33-34. Aliás, “o estado fiscal implica uma cidadania de liberdade cujo preço reside em sermos todos destinatários do dever fundamental de pagar impostos”. Idem, p. 34.

[15] NABAIS, José Casalta. Por um estado fiscal suportável: estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2005.

[16] A frase foi dita em 1927, por Oliver W. Holmes, juiz da Suprema Corte norte-americana e está citada na obra de josé Casalta Nabais. NABAIS, José Casalta. Por um estado fiscal suportável: estudos de direito fiscal. Coimbra: Almedina, 2005, p. 25.

Letícia de Mello

é mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), especialista em Direito e em Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), especializanda em Direito Penal Económico, pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (IDPEE) em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), professora, advogada e associada à The European Law Students Association (Elsa) e ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE) ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e à Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

Marciano Buffon

é professor da Unisinos, pós-doutor em Direito e advogado tributarista.

Site: conjur.com